Moisés da Silva Gomes[1]
1.
INTRODUÇÃO
Ao
se tencionar examinar o conhecimento jurídico pela via filosófica é indispensável,
em primeiro lugar, que esta estrada seja afeita ao pesquisador, ajustando-se aos
limites de sua experiência. Sem o prévio conhecimento da Filosofia geral, por
seus métodos e funções, é impossível atingir a plena compreensão da Filosofia
do Direito, pois, ao passo que aquela é gênero, esta é espécie. A cultura
filosófica somente progride no espírito acostumado à reflexão e aberto aos
grandes temas que abrangem a natureza e o homem. Se é verdade que a condição de
jusfilósofo não é obtida por grau universitário, senão pela constância do
pensamento dialético, também é certo que apenas alcança essa condição o
jurisconsulto que cultiva, como hábito, a atitude filosófica.
O cabedal
de conhecimentos que a Filosofia do Direito propicia procede de três categorias
de pensadores: filósofos, juristas e jusfilósofos. Como a Filosofia é uma perspectiva
universal da realidade e o Direito se alista no quadro de uma ontologia
regional, um sistema filosófico, para ser abarcante, deve-se considerar temas
jurídicos basilares, como os problemas da justiça e da lei.
Dessa
forma, renomados filósofos, como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant,
Hegel, contribuíram valiosamente à Filosofia do Direito. Por outro lado, os jurisconsultos
nem sempre se prendem à perspectiva da Ciência do Direito, transpondo o mero
trabalho de interpretação e sistematização do Direito que está em vigor. Ora põem
em discussão os postulados da Jurisprudência, ora sujeitam os institutos
jurídicos a uma análise em seus fundamentos, situando a sua preocupação na
esfera da Filosofia do Direito. O grande fundamento, porém, que fortalece e
enriquece essa disciplina, encontra-se na atividade dos jusfilósofos, daqueles
que, autenticamente filósofos, conhecem a ciência jurídica.
Enquanto
filósofos e juristas desenvolvem a reflexão jurídica em campo limitado, os jusfilósofos,
agregando o conhecimento das correntes filosóficas ao conhecimento das
categorias lógicas do Direito, operam nos domínios da jusfilosofia sem restrições
culturais, tendo como objetivo o rigor lógico dos conceitos jurídicos e o
ajuste do Direito Positivo aos valores humanos fundamentais.
2.
CONCEPÇÃO HODIERNA DE FILOSOFIA
Hodiernamente
a Filosofia se caracteriza como método de reflexão pelo qual o indivíduo se empenha
em interpretar a universalidade das coisas. Não reclama a compreensão geral de
todas as coisas: algo inacessível, na atualidade, devido ao “estouro” de
conhecimentos que acontece no campo científico.
Quando
se afirma que a Filosofia constitui o conhecimento das coisas por sua
perspectiva universal, se almeja expressar, na verdade, que, ao fazer a
reflexão sobre cada objeto ou fato, o filósofo deve munir-se antecipadamente de
todos os conhecimentos relativos ao assunto a ser discutido.
Caracteriza-se
a Filosofia como indagação ou procura incessante do conhecimento, por
intervenção da investigação dos primeiros princípios ou últimas causas. O
espírito filósofo não se contenta com a leitura dinâmica dos fatos ou com meras
observações. Esse espírito contesta sempre e, a cada resposta conseguida, passa
a novas indagações, até chegar à essência das coisas.
Em
verdade, a Filosofia corresponde a uma atividade natural, instintiva, pela qual
o indivíduo busca compreender a realidade como um todo e assimilar o profundo
significado dos objetos. O seu único incentivo é o amor à sabedoria. Como disse
Reale (1999, p. 5), a filosofia espelha esse “amor pela verdade que se quer
conhecida sempre com maior perfeição, tendo-se em mira os pressupostos últimos
daquilo que se sabe”. Assim, a reflexão se faz de forma desprendida, numa disseminação
natural do espírito e, consequentemente, é pensamento independente e autêntico.
Contudo,
a Filosofia não é mero exercício mental ou fantasia. Como exemplo de exegese,
ela se projeta na realidade concreta, exercendo influência sobre as ciências, o
comportamento dos indivíduos, os caminhos da Humanidade. Ela influencia as
ciências, analisando e criticando seus postulados básicos e delimitando seu
campo de pesquisa. Cada ciência encontra-se comprometida com uma determinada gama
de conhecimentos e o seu conjunto não proporciona uma noção universal, mas
visões incompletas, divididas em setores. Cabe à Filosofia, então, fomentar o
nexo entre todas as perspectivas e ser a “tradutora” da realidade. A sua função
não é somente a de decifrar o mundo objetivo, já que também desenvolve a
crítica do comportamento humano e do saber acumulado.
Ao levar
em consideração a universalidade dos objetos e revelar o sentido da vida, a
Filosofia mostra ao indivíduo os seus valores fundamentais e norteia os
caminhos da Humanidade.
3. NOÇÃO
E OBJETO DA FILOSOFIA DO DIREITO
Ao estabelecer
modelos de comportamento social, à luz dos valores de conservação e desenvolvimento
do homem, o Direito possibilita a convivência e participa, por sua importância e
como área definida do saber, na ordem geral das coisas. Como objeto do conhecimento,
não pode ser considerado fragmento da realidade e desenvolvido isoladamente.
Assim, a compreensão do Direito necessita ser alcançada na perspectiva
universal dos fatos e fenômenos. Como é sabido, o seu conhecimento científico
atende às exigências operacionais de criação, interpretação e aplicação, entretanto
não se mostra suficiente para resguardar a plena correlação entre os conteúdos normativos
e a idéia do “ius”. Assevera Miguel
Reale (1999) que:
O direito é realidade
universal. Onde quer que exista o homem, aí existe o direito como expressão de
vida e de convivência. É exatamente por ser o direito fenômeno universal que é
ele suscetível de indagação filosófica. A filosofia não pode cuidar senão
daquilo que tenha sentido de universalidade. Esta é a razão pela qual se faz
filosofia da vida, filosofia do direito, filosofia da história ou filosofia da
arte. Falar em vida humana é falar também em direito, daí se evidenciando os
títulos existenciais de uma filosofia jurídica.
Existe,
pois, uma função significativa a ser desempenhada pela Filosofia na esfera
jurídica. Como fruto da experiência, o Direito pode seguir diferentes
ideologias e assumir variados modelos. As formações jurídicas não são
indiferentes às correntes de pensamento: presumem sempre uma escolha
ideológica, uma exegese objetiva da realidade. Tal é a importância da Filosofia
do Direito para esse campo do pensamento, que não se consegue chegar ao Direito
genuíno sem a reflexão filosófica. É que o fenômeno jurídico, por influenciar a
vida humana, deve ser estudado paralelamente à análise do homem.
De
acordo com Rêgo:
A Filosofia do Direito parte de premissas ou dogmas pré-estabelecidos
para indagações, transcendendo o conhecimento positivo através de uma análise
crítico-reflexiva, que proporciona ao homem um conhecimento holístico e
integrativo de sua própria realidade, quer sob o ponto de vista da elaboração e
vigência legislativa, quer sob o aspecto hermenêutico, quando da interpretação
e aplicação das normas legais. Esta análise jusfilosófica, englobante e
existencialista do ser pensante, observa e valoriza o processo de formação do
jurista ou ator do direito, estimulando-o e conscientizando-o a uma atitude
crítico-filosófica, a desenvolver atividades e habilidades que exijam reflexão,
poder de valoração, avaliação e julgamento de sua própria realidade.
A polêmica
é própria e imanente à Filosofia e em nada se poderá estranhar com a
pluralidade de opiniões sobre um mesmo objeto. Esta característica do
pensamento filosófico não proíbe, no entanto, ao longo do tempo, que novos
princípios e teorias sejam consagrados mundialmente. Em um processo longo de assentamento,
formam-se também correntes diversas, interpretadoras da realidade jurídica.
Pela sua racionalidade e força lógica de expressão, notáveis jusfilósofos apressam
a marcha de evolução do pensamento, estabelecendo novos caminhos dialéticos.
Como
objeto cultural provido de complexidade, o Direito comporta diferentes planos
de estudo. Do ponto de vista legal, é abordado pela Ciência do Direito,
disciplina fundamental que interpreta e sistematiza o ordenamento vigente, sem
preocupar-se com o problema axiológico. Sob o aspecto fatual, é examinado pela
Sociologia do Direito, que considera as relações entre o fenômeno jurídico e a
sociedade, com atenção básica para o ajuste do Direito à realidade social. Não analisa
as categorias lógicas, nem cogita do dever-ser e de valores. Do ponto de vista evolutivo,
o fenômeno jurídico é objeto da História do Direito, que pesquisa a etiologia e
o desenvolvimento das instituições, com o estudo concomitante dos fatos
históricos. Caso a atitude filosófica se projete nos domínios da Jurisprudência,
tomando o fenômeno jurídico por objeto de indagação, a análise se processa em
um plano muito fecundo, onde se discutem problemas de grande importância para a
organização social. O estudo ontológico do Direito, a pesquisa de seus elementos
universais e necessários, o exame axiológico de suas formas de expressão
constitui a matéria de reflexão da Filosofia Jurídica.
Como
estudo reflexivo, que almeja a compreensão do Direito dentro de uma visão harmoniosa
da realidade, a Filosofia Jurídica dispõe de um amplo conjunto de temas de
análise que se divide em dois grandes planos de reflexão: um de natureza
epistemológica, em que se pesquisa o conceito do Direito e assuntos afins, e
outro de caráter axiológico, no qual se sujeitam as instituições jurídicas a um
exame crítico valorativo. Sendo assim, o primeiro encargo atribuído à Filosofia
Jurídica é a de elucidar, em seus aspectos universais e necessários, a noção do
Direito.
Percebe-se,
assim, a profunda relação existente entre a Filosofia geral e a Filosofia do
Direito, pois as grandes correntes filosóficas possuem vigor e se disseminam
por numerosos ramos do saber.
Conforme
o paralelo kantiano, enquanto a Filosofia do Direito responde a pergunta “O que
é o Direito?”, à Ciência Jurídica cabe esclarecer a pergunta “O que é de Direito?”.
De fato, o encargo de definir o Direito não se acha destinado somente às disciplinas
jurídicas particulares, já que estas analisam só uma fração da realidade
jurídica e estabelecem as orientações de legalidade. A Ciência Penal, por
exemplo, lista as suas fontes de conhecimento, porém não está apta a informar
sobre as fontes do Direito em geral. Como a Filosofia do Direito contempla a “árvore
jurídica” em sua totalidade e na sua relação com as coisas em geral, a ela está
destinada a função de dizer o que é o Direito e procurar as respostas para os
problemas ligados a essa indagação.
Consoante
ao que diz Rêgo:
A Filosofia do Direito se ocupa em examinar os sistemas lógicos
que foram elaborados no curso do pensamento especulativo por filósofos e
juristas, enquanto o Direito visa o estudo sistemático normativo verificável no
processo de convivência humana. As interrogações centrais da filosofia jurídica
giram em torno da conceituação do Direito; interessa-se sobremodo pela reflexão
a respeito da normatividade, conceito de certa complexidade, pois envolve
outras determinações indispensáveis à capacitação de seu sentido. Norma implica
certa hierarquia de valores que permitem apreensão dos fatos sociais, em uma
análise que envolve inevitavelmente para o terreno especulativo, extrapolando
da pura análise científica para o campo da reflexão filosófica, pois a
plenitude de uma visão do processo jurídico só é alcançada pela filosofia do
direito.
Paralelamente
ao problema conceitual, nessa ordem de pesquisas afloram questões fundamentais,
como a referente aos elementos constitutivos do Direito; a pergunta se este compõe-se
de norma e é a expressão da vontade do Estado; se a coação faz parte da essência
do Direito; se a lei injusta é Direito e, como tal, obrigatória; se a
efetividade é fundamental à validade do Direito etc.
Outra
tarefa da Filosofia do Direito é de alcance mais prático e consiste na análise valorativa
das leis, institutos ou do sistema jurídico. A investigação pode achar-se no
plano da “lei como ela existe”, com a crítica ao Direito vigente, ou no plano de
“o que a lei deveria ser”, em um ensaio do Direito ideal a ser criado. Durante
esta investigação o pensamento jusfilósofico é norteado por princípios éticos
e, essencialmente, pelo valor justiça, por intermédio dos quais avalia o
ordenamento, para justificá-lo ou negar-lhe validade. Esta segunda parte está
vinculada aos imperativos da vida social e objetiva o enriquecimento da Ciência
do Direito, pois aprecia os critérios da lei em função dos valores humanos e
sociais. Quando se avalia a eutanásia, por exemplo, sob o prisma do Código
Penal, o estudo é de Ciência Jurídica, mas quando a atividade intelectual excede
esse plano, a fim de julgar o critério legal com base nos postulados éticos, a
tarefa desenvolve-se no âmbito e com os métodos da Filosofia do Direito.
REFERÊNCIAS
ALVES, Alaôr Caffe et al. O que é Filosofia do Direito? São Paulo: Manole, 2004.
BITTAR, Eduardo, C. B.;
ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de
Filosofia do Direito. 8. ed. São Paulo. Atlas. 2010.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São
Paulo: Saraiva, 1999.
RÊGO, Nelson Moraes. A
importância da filosofia do direito na formação do jurista na pós-modernidade,
uma visão epistemológica. Disponível em: www.nelsonrego.com.br/pdf/artigos/ARTIGO1.pdf.
Acesso em: 08 de março de 2012.
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