sábado, 17 de março de 2012

Filosofia como base metódica para o direito: O instrumento do instrumento.



Emily Monique Bezerra Puigseck[i]

Resumo: Este trabalho apresentará de modo conciso como o direito, enquanto ferramenta reguladora das relações sociais, na pós modernidade, necessita da filosofia para se fazer direito.
Palavras-chave: direito, pós-modernidade, filosofia

Abstract: This paper seeks to show concisely how the Law, while regulatory tool of social relationship in post-modernity, needs of philosophy to make itself justice.
Keywords: Law, post-modernity, philosophy


 Traduzida na dicotomia direito natural – direito positivo, a oposição entre o estado de natureza e a sociedade organizada partiu da antiguidade, atravessou a idade média, a idade moderna e alcançou a pós-modernidade, quando o direito é revelado como o instrumento necessário para resolver as controvérsias da vida em sociedade.
Ao longo da história, o Estado assumiu a função reguladora e mediadora das tensões sociais se valendo do direito natural e positivo de um modo particular a cada período. Na antiguidade, idade média, modernidade e pós modernidade a relação entre direito natural e direito positivo assumia às características históricas da época. Este trabalho irá mostrar de que modo o Direito, instrumento, tomou a filosofia do direito (instrumento) para se apresentar de forma coerente na superação das tensões próprias da convivência em sociedade. Nessa medida, na pós modernidade, deixou de vigorar a lei do mais forte (fisicamente) para vigorar a lei do mais inteligente (o argumento mais coerente).
Antiguidade
Segundo Aristóteles as ações estabelecidas em lei são aquelas às quais sua execução não pode ser desviadas do manual positivado. No capítulo 7 do livro V de Ética a Nicômaco explicita:
“Da justiça política, uma parte é natural e outra parte é legal: natural, aquela que tem a mesma força onde quer que seja e não existe em razão de pensarem os homens deste ou daquele modo; legal, a que de início é indiferente, mas deixa de sê-lo depois que foi estabelecida (...)”  [1]
Significa dizer que o direito apresenta duas faces, a saber: Direito Natural e Direito Positivo. O direito natural tem igual eficácia em todo lugar, é imutável no tempo e no espaço, enquanto o positivo limita-se à comunidade onde é posto, contudo, uma vez regulada a ação esta deve ser desempenhada conforme prescrito em lei. Acrescenta o autor:
“(...) o homem comum não obedece por natureza o sentimento de pudor, mas unicamente ao medo, e não se abstém de praticar más ações porque elas são vis, mas pelo temor ao castigo”.  [2]
Logo, a ação positivada estabelece uma sanção para impedir os desvios de conduta, Aristóteles considera que a lei não é pesada porque o Estado ordena ao homem o que é bom.
Idade Média
Durante a Idade Média, o Estado, vinculado à Igreja por meio de seu soberano (representante de Deus na Terra), encerra em si o poder de legislar, julgar e aplicar todas as normas. Nesse sentido, o direito natural prevalece sobre a norma positivada. Destarte, todas as relações sociais seriam então reguladas pela moral, igreja e um Estado que posteriormente buscou a autonomia em relação ao poder religioso.
Destaca-se que aqui o direito natural era associado à vontade de Deus, autor da natureza, e por isso, dado como superior ao direito positivo, conhecido mediante ‘declaração de vontade do legislador’.  [3]
Essa concepção foi contestada ao final daquele período quando desencadeou-se uma nova corrente filosófica, o iluminismo, que na busca pela completa liberdade do Estado em confronto ao poder clerical, atribuiu ao direito positivo uma completude (os juspositivistas). 
Essa relação extremada dos positivistas ao fim conviveu com a noção tímida de direito natural enquanto fonte do direito positivo, não de modo que uma visão seguia a outra como em uma cronologia, mas uma sociedade plural que abordava, como ainda hoje é abordado, o Direito sob as mais diversas dimensões até que fosse superado o conceito medieval por aquele da modernidade.
Modernidade
Hobbes [3] disse que o legislador é limitado porque o ser humano não pode prever todas as circunstâncias e foi nesse sentido que o direito natural pontualmente passou a ser visto como fonte do direito positivo.
Aparentemente em confronto àquela tese, em 1934 Hans Kelsen publica a obra Teoria Pura do Direito, onde o autor trata da validade do direito e busca estudá-lo de forma isolada da sociologia e da ideologia. É apresentada a ideia de que o papel do jurista é se ocupar daquilo que é válido, pois as normas são válidas ainda que injustas, explicitando que o Direito não deve ter justificação moral e que além da validade, a norma deve ser eficaz para que se diga, enfim, da existência do direito.
Norberto Bobbio explica, na obra Direito e Poder, que segundo a Teoria kelsenina, o Direito enquanto ciência deve abster-se de valores e que caberia à Filosofia a justificação do sistema de valores, conforme:
“O erro capital da Teoria Pura do Direito, segundo eles, estaria no fato que, impondo ao jurista comportar-se como um frio intérprete da norma positiva, qualquer que seja o valor ético da norma, transforma-o num colaborador de qualquer regime, por abjeto e repugnante que seja (...)” [4]
Ora, destaca-se ser inegável a incompletude da norma em si, diz Ihering:
“Quando um indivíduo é lesado em seu direito, faz-se irremissivelmente esta consideração, nascida da questão que em sua consciência se apresenta, e que pode resolver como bem lhe aprouver: — se deve resistir ao adversário ou se deve ceder. Qualquer que seja a solução, deverá fazer sempre um sacrifício; — ou sacrificará o direito à paz ou a paz ao direito. A questão assim apresentada parece limitar-se a saber qual dos dois sacrifícios é o menos oneroso” . [5]
Insta que, embora Kelsen apresente como objetos do direito puro a validade e a eficácia, a norma só terá eficácia e efetividade se analisada no contexto ao qual está inserida, se aplicada ao caso concreto. Momento em que o Direito se faz direito e não mera letra de lei. Momento em que a hermenêutica é revelada como o instrumento fundamental do direito na pós-modernidade.

Pós Modernidade e Hermenêutica
Ora, se o direito é linguagem e comunicação, como superar as tensões sociais sem a filosofia?
Falar em direito sem abordar sua dimensão filosófica é como ler as palavras sem buscar sentido ou significado nas mesmas, é como se apresentar como mero analfabeto funcional diante da lei.
Todo cidadão é capaz de ler traduzir o sentido da lei, mas apenas o conhecedor da dimensão filosófica do direito, habilitado a defender seu posicionamento através de um discurso coerente, conhecedor da doutrina, das relações sociais, das teorias do Estado e das relações de poder são capazes de dar seguimento ao direito como instrumento de pacificação social, ou melhor de resolução de conflitos, ainda que de forma não pacífica.
Müller esclarece:
“A dificuldade da concretização se deve antes ao fato da língua não ser inocente e da fala ter uma forma da ação. A língua sempre apresenta marcas prévias da violência social e dos seus vestígios, a língua do direito está endurecida, calcificada adicionalmente pelo poder-violência (Gewalt) do Estado e deformada pela pressão e pelos conflitos dos grupos envolvidos. Não há como escapar ao combate semântico, muito menos na concretização” [6]
Significa dizer que concretizar o direito é usar a hermenêutica para convencer o juiz sobre qual parte terá o seu pedido atendido. Esse embate argumentativo transcende às partes e alcança o juiz na medida em que este deve justificar a sua sentença.  Conforme aponta o Código de Processo Civil Brasileiro:
Art. 131.  O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que Ihe formaram o convencimento.” [7]
O direito é, portanto o dispositivo catalisador na busca de soluções para os conflitos do meio. Soluções estas, que apesar de não serem sempre pacíficas buscam extinguir os conflitos que ao Direito se submetem.  Habermas explica que:
“(...) los participantes individuales en la argumentación que siguen manteniendo su orientación al entendimento, por um lado permanecen ligados em uma práctica ejercida em común; por outro, bajo la suave coácción del mejor argumento, deben tomar posición respecto a las pretenciones de validez fundadas desde el juicio próprio y autônomo”. [9]
Ora, resta provado que o Direito e linguagem são pares, Habermas explica isso de maneira sóbria quando apresentou a teoria do agir comunicativo como aquela a qual o argumento segue mantendo sua orientação ao convencimento de modo a haver a suave coação pelo melhor argumento.
Resta provada ainda, a instrumentalidade da filosofia do direito em confronto com a norma. Destarte, na pós-modernidade, não é possível falar de direito e justiça sem abordar os aspectos de valoração que a linguagem empresta a tais conceitos, ou mesmo, sem abordar a própria linguagem como instrumento do direito, porque direito é linguagem.

Obras Citadas


[1]
Aristóteles, “Livro V,” em Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores., J. A. M. Pessanha, Ed., São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 131.
[2]
Aristóteles, “Livro X,” em Ética a Nicômaco. Coleção os Pensadores, J. A. M. Pessanha, Ed., São PAulo, Abril Cultural, 1979, p. 232.
[3]
N. Bobbio, O Positivismo Jurídico, N. Morra, Ed., São Paulo: Ícone, 2006.
[4]
N. Bobbio, Direito e Poder, São Paulo: UNESP, 2008, p. 25.
[5] IHERING, Von R. A luta pelo Direito. Disponível em http://dc477.4shared.com/download/dn5xOFNP/A_Luta_pelo_Direito_-_R_von_Ih.pdf?tsid=20120316-084307-2b0cf6f7. Acessado em 12/03/2012. Página 29.]
[6] Müller, Friedrich. Concretização da Constituição. Conferência proferida em 22 de agosto de 1996 na abertura do ‘Congresso Internacional de Direito Constitucional, Tributário e Administrativo no Centro de Convenções da UFPE (Recife). Publicado in Müller Friedrich. Methodik, Theorie, Linguistik des REchts: Neue Aufsätze (1995-1997). Berlim, Duncker & Humblot, 1997, pp 20-35 (traduzido pela UFPE).
[8]. Habermas, Jürgen. Acción comuncativa y razón sin transcendência. Traducción de Pere Fabra Abat. Paidós, Barcelona: 2001. p. 98

Referências Bibliográficas


[1]
Aristóteles, “Livro V,” em Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores., J. A. M. Pessanha, Ed., São Paulo, Abril Cultural, 1979, p. 131.
[2]
Aristóteles, “Livro X,” em Ética a Nicômaco. Coleção os Pensadores, J. A. M. Pessanha, Ed., São PAulo, Abril Cultural, 1979, p. 232.
[3]
Bobbio, Norberto. O Positivismo Jurídico, N. Morra, Ed., São Paulo: Ícone, 2006.
[4]
 Bobbio, Norberto.  Direito e Poder, São Paulo: UNESP, 2008, p. 25.
 [5] Brasil. LEI No 5.869, DE 11 DE JANEIRO DE 1973. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5869compilada.htm. Acessado em 15 de março de 2012.
[6] Habermas, Jürgen. Acción comuncativa y razón sin transcendência. Traducción de Pere Fabra Abat. Paidós, Barcelona: 2001. p. 98
 [7] IHERING, Von R. A luta pelo Direito. Disponível em http://dc477.4shared.com/download/dn5xOFNP/A_Luta_pelo_Direito_-_R_von_Ih.pdf?tsid=20120316-084307-2b0cf6f7. Acessado em 12/03/2012. Página 29.]
[8]. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Dirieto. Tradução de J. Cretella Jr e Agnes Cretella. 7ª ed. Revista dos Tribunais (RT), 2011.
[9] Müller, Friedrich. Concretização da Constituição. Conferência proferida em 22 de agosto de 1996 na abertura do ‘Congresso Internacional de Direito Constitucional, Tributário e Administrativo no Centro de Convenções da UFPE (Recife). Publicado in Müller Friedrich. Methodik, Theorie, Linguistik des REchts: Neue Aufsätze (1995-1997). Berlim, Duncker & Humblot, 1997, pp 20-35 (traduzido pela UFPE).
[10] STRECK, Lênio Luiz. O que é isto? – Decido conforme minha consciência? 2ª ed. Livraria do Advogado editora, Porto Alegre: 2010.


[i] Emily Monique Bezerra Puigseck. DZ10125-15. Estudante do sexto período de Direito na Universidade Federal do Maranhão. http://lattes.cnpq.br/7498329936304038

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